quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Tributo a um toco de meia voz






Jefferson Passos *


Dona Goiabeira era o ser mais alto nas vizinhanças de Pasargada, uma rua construída no final do verso. Vivia presa onde gostava, mas não gostava de como vivia. A culpa, conforme descobrira logo, alteava voz lá de baixo, das brochuras de duas pernas, papagaios sem asas.

Goiabeira, cujo nome permitiu ser citado sem as regalias do tratamento formal, não usava bermuda, c...
ertamente; e se bermuda usasse seria menos “morta nas calças” que os moleques descalços a dormir na hora mansa da sesta, à sua sombra.

Diz-se que naqueles dias derradeiros, a velha, também moradora mais antiga nas redondezas (segurou-se firme nas calendas dos tempos indígenas, virara viúva do firmamento), andava mimosa e outonal, sabedora de umas incontáveis visitas de cerras fatais por ali, a por abaixo grandes vegetais feitos de tradição, como ela. Insensível ao desabar folhas e folhas nos caminhos de passantes, debochada pelo prado verde que formara aos seus pés.

Tinha sonho de gigante mítico, frustrada que era de seu tamanho. O desígnio natural, assim achava para uma árvore, seria alcançar as alturas improváveis (e não sabia por que, mas os humanos tinham algo que ver com isso, suspeitava). De súbito, veio o obstinado desejo de voar, pertencer a uma classe julgada evoluída por ter asas. Asas de liberdade dos passarinhos.

No duro, voar, voar mesmo nunca voou, embora visse todos do alto, medrosa dos homúnculos – horda mais agitada que o cupim mateiro, residente naquele corpo fazia uns quantos anos.

De sua copa, certa vez, avistara uns paus de madeira retorcidos, presumivelmente entranhas de um grande tronco. Em verdade, aquele montinho marrom na esquina da rua Pereira, o mesmo ponto onde vivera outra farta goiabeira, poderia bem ser de uma linhagem sua, um primo sem porvir.

Vivera em Pasargada antes das picadas, dos asfaltos, dos sobrados e dos bangalôs, uns sem número de goiabeiras. Levava consigo a sobrevivente, certeza de que não fora uma seleção natural o que fez restarem tão poucas. A seleção do homem é sempre forjada a partir e ao cabo dele, malgrado a natureza, impertinente natureza de goiabas e...

Interrompia divagação para voltar-se a um problema crônico desse fim de vida. Enquanto pássaros trinavam por suas ramificações, notou o galho maior estremecer. O corpo todo acostumou-se a estremecer, consequência da podridão que lhe sucumbia, qual um dente cor de âmbar pútrido na raiz. Agora galhos desabavam diariamente aos montes, a luz do dia, e goiabeira era vista como um perigo por quem flanasse em seu derredor.

A velha, a sentir-se impotente e desusada, tateou-se pela última vez. Antes de desabar quis rir de uma pilhéria adaptada, impassível. Vozeou a meia voz: não era pau, nem era pereira, mas quebrava um galho todo o dia.
 
 
* Marxista, estudante de Comunicação Social - Jornalismo, pela Universidade Fortaleza; graduando de História (Bacharelado), na Universidade Estadual do Ceará. É estagiário da Secretaria Executiva Regional II, e milita na área dos direitos humanos e das causas ambientais.

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